sábado, 8 de março de 2008

Sete sonhos para Eva VI

Chamava-se Eva, corria descalça e tinha um sonho. Improvável e secreto, não o confessava nem às paredes. Sonhava ser homem por um dia. Sentir descalço um outro corpo, rios de testoterona, que adrenalina!, a outra intrínseca face da moeda, da existência, do coito, o másculo, o penetrador.
Para além da estranha curiosidade de saber o que é ser alguém que não somos, Eva estava convencida que a solução para os seus problemas matrimoniais residia no facto de não entender a cabeça dos homens. Se por magia o seu sonho se cumprisse, talvez conseguisse descortinar a forma como as palavras lhes chegam, como os actos lhes tocam, quais as cores da caverna onde se refugiam e porque razão persistem em processos mentais primários do tipo andar à tareia.
Um dia Eva sonhou. Ao princípio não percebeu, julgando-se espectadora de um filme a três dimensões com enredo pobrezinho de cordel. Sonhar com mulheres nunca lhe tinha acontecido. Teve apenas um momento para sentir “aquilo”. Olhou na direcção dos pés descalços, mas a vista deteve-se ao nível do baixo ventre. Acordou de supetão a gritar, o marido estremunhado tomou-a nos braços, a uma Eva que não percebia mais que na noite anterior, mas infinitamente feliz da sua condição feminina. Não sabia, mas estava grávida.

Sete Sonhos para Eva - V

“Chamava-se Eva, corria descalça e tinha um sonho”, disse-lhes aquela mulher, com os olhos mais negros do mundo, a voz mais cansada e triste, recostada na poltrona mais velha da enfermaria. Deitaram-na e desejaram-lhe as boas noites.
De manhã vieram outros levantá-la e dar-lhe banho. Com a água a escorrer-lhe do rosto, disse-lhes: “Chamava-se Laura, corria descalça e tinha um sonho”. Pentearam-na, cobriram-lhe as pernas e os ombros e sentaram-na na poltrona.
Ao jantar insistiram para que comesse, abrisse mais os olhos e comunicasse com eles. Sussurrou-lhes, muito lentamente: “Chamava-se Mariana, corria descalça e tinha um sonho”.
Na ronda da noite encontraram-na morta. Tirara as meias, estava ainda quente e guardava um belo sorriso nos lábios, como quem sonha um sonho feliz.

Sete Sonhos para Eva - IV

Chamava-se Eva, tinha um sonho e corria descalça.

Eva, Eva, Eva...deixa ver , era uma miúda loura...não, essa era a Carla. Sim, sim já me lembro , uma ruivinha que também se chamava Carla. Eva Carla, parece-me. Não soa nada bem mas era o nome dela. Servia ao balcão daquele café sempre às moscas, como é que se chamava... bem, nunca a vi correr descalça

Não era uma miúda, era uma senhora…

Há muitas evas…se tivesses uma fotografia

Acha o quê? Que sou do FBI? Se quiser faço-lhe aqui rapidinho um retrato robot…

E isso do sonho? Que sonho era?

Não posso dizer

Grande ajuda sim senhor…eh pá…! Olha ali o Júlio talvez saiba, Júlio, chega-te cá. Lembras-te duma miúda que se chamava Eva, tinha um sonho que este gajo não quer dizer qual era e corria descalça.

Era uma senhora

Corria descalça? não se chamava Leonor?

Qual Leonor? Essa era a da fonte, só ia descalça e não segura, não corria. Esta só corre e chama-se Eva

Não conheço nenhuma Eva. Há a Eva Longoria mas não é das minhas relações

Talvez seja essa

Não, essa usa calçado de marca quando vai correr

Mas afinal o que é que queres a esta Eva? Deve-te dinheiro? Obrigado Júlio

Não…posso confiar em si?

Claro rapaz, não te pareço um homem de confiança?

Não, mas pelo menos parece estar disposto a ouvir-me... Eva é a minha mãe


Não me digas…olha, também a minha eh eh . E tu como te chamas? Caim ou Abel?

Adão

Ena, ena. Incesto no Paraíso

Este é um problema. Toda a gente pensa que éramos um casal, mas não, éramos mãe e filho. Só que ela desapareceu.

E o sonho?

O maior sonho da vida dela era que eu fosse padre. Ainda cheguei a estudar mas…

Porque é que não vais à polícia?

Você é maluco? Acha que na polícia iam querer saber duma prostituta velha com Alzheimer, com um filho chulo, que recebem clientes numa pensão rasca com um nome improvável – Paraíso?

Sete Sonhos para Eva -III

Chamava-se Eva, corria descalça e tinha um sonho.
Desde pequena que a família pronunciava o seu nome de uma forma sincopada, E-va, uma ligeira dúvida no final, procurando sem encontrar. E-va?
Tinindo nas solas dos seus pés, Eva sentia o mundo. Sentia a rugosidade das pedras, o toque húmido das ervas, a macieza dos bichos-de-conta. Engolia o azul do céu, o verde dos fetos, o amarelo dos hibiscos. Sonhava com a leveza das borboletas, a rapidez das libelinhas, o voo dos pardais.
E o ar, que peso teria o ar, quando Eva o revolvia com os seus braços-vela?
Quando regressava a casa, E-va?, as sombras cercavam-na e Eva deixava de o ser para se resguardar dos braços-faca que esquartejavam a sua alma. E-va!

Sete sonhos para Eva - II

Chamava-se Eva, corria descalça e tinha um sonho.
Minto, não tinha só um sonho, tinha vários sonhos instrumentais para conseguir alcançar O SONHO.
Neste momento, um dos seus pequenos sonhos passava por conseguir apanhar o comboio, não o podia mesmo perder, portanto, com os stilettos na mão, correu pela plataforma até conseguir entrar, mesmo no último instante.
Respirou fundo, encontrou a casa de banho e, depois de se retocar, olhou para o espelho com um sorriso de satisfação, o calçado não tinha sido boa opção para uma corrida, mas estava linda e sabia que ia triunfar.
Saiu do comboio, chamou um táxi, e indicou “para a Ópera, se faz favor.”
“Uma menina assim gira? Não prefere antes uma discoteca?”
Eva riu e disse “hoje não. Hoje vou só assistir à ópera, mas daqui por dois anos vai ver a minha cara nos cartazes como a nova grande diva. Acredite.”

Sete sonhos para Eva - I

Chamava-se Eva, corria descalça e tinha um sonho.
Guardava-o em segredo no calor de um fruto de pele rubra. Pensava-o de longe, como se pensa uma ilha ou uma lua. Tocava-o de leve, como se fosse uma pétala, um perfume. Um dia quis partilhá-lo. Apresentou-o ao homem, sem palavras. Exibiu-o no silêncio de um gesto estendido, como quem diz: “Vê! Sinto-o carne onde se mostra pele”. Aquela dureza de corpo vivo a encher a vista, a roer o medo, atiçou nele a fome do que faltava. Dividiram entre si a vontade de serem mais. De serem pior.
A dentada rasgou o jardim. Abriu o portão. Soltou o monstro. Expulsos, com declaração de culpa, vergonha e temor, apenas levaram o fruto com que fizeram casa, sombra, amor.
Naquele instante, o tempo começou. Ainda correm, descalços, nas horas que sonham, em círculos, a tontura de um dia feliz.

sexta-feira, 7 de março de 2008


De forma a assinalar as comemorações do Dia Internacional da Mulher e a convite de Elsa Soares, da RDP, o “Corpo Insólito” vai publicar neste Dossier Mulher não um conto sequencial, como tem sido hábito, mas sete micro contos nascidos do mesmo desafio: uma frase a que cada um dos membros do “Corpo Insólito” dará a sua criatividade. Sete faces, sete visões, sete sonhos para Eva.